O Lado Oculto de Murças

O Lado Oculto de Murças

É noite cerrada. São onze menos um quarto e o céu está encoberto, escapando apenas, aqui e ali, um pálido raio de luar proveniente de um esguio quarto crescente. Ouvem-se estalidos provenientes da mata da encosta oposta à vinha do Assobio. Nas ruínas por baixo das vinhas velhas, ruídos estranhos ecoam. Está frio, mas não demasiado. É como se algo, alguma presença, tornasse mais amena a brisa húmida vinda de norte.

Asas na Escuridão
Nos confins do Baixo Alentejo há quem lhes chame almas, devido à sua cor branca e voo silencioso. Mas, quando decidem dar nota da sua presença, têm um piar ríspido e, por vezes, capaz de arrepiar o mais valente homem feito. Vivem perto de nós, apreciam a nossa presença e caçam ratos em doses monumentais. São as simpáticas e benévolas corujas das torres, presença habitual pela quinta e um dos nossos maiores ajudantes no combate a roedores. Com atenção, também ouvimos pequenas crepitações sibilantes. Apesar de estarmos em Novembro, ainda andam morcegos activos – não sabemos se cavernícolas ou florestais, pois só com detetores de ultrassons e o apoio de um especialista é que poderíamos tirar conclusões. Mas eles aí andam, ainda à cata das últimas refeições antes de virem as madrugadas de geada.

Mais abaixo, junto às linhas de água que vão ter ao meandro do Douro que marca o limite sul de Murças, escutam-se apitos roucos vindos dos canaviais: são os galeirões comuns que emitem curtos chamamentos. Mas a surpresa está na vertente norte do monte, que se ergue a maior altitude nas imediações da quinta. Uma considerável mancha florestal, com bosquetes de azinho e medronhais salpicados de sobreiros e pinheiros dispersos. O vulto é raramente avistado, mas uma vez assomado fica para sempre na nossa memória. É a maior rapina noturna e uma das mais imponentes aves de Portugal. Pode ter entre meio metro e quase 90 centímetros de tamanho, perto de 2 metros de envergadura de asas, olhos amarelos enormes e dois penachos em forma de orelhas. É verdade. Se tiver sorte, pode uma noite ouvir o seu peculiar “u-hu!” ecoar na noite trasmontana ou até mesmo ver o magnífico bufo-real.

Embalados pela noite, a sonhar com o mar
O Douro reflecte as luzes da Folgosa e Covelinhas e, lá ao fundo, no sentido oeste, vê-se o paredão da barragem da Régua e pomo-nos a sonhar: como seria o Douro selvagem de outras eras? Antes das barragens e das estradas, há um século atrás, com os barcos carregados de pipas a descer do alto Douro trasmontano em direcção às caves de Gaia. Mas nem só os barcos subiam e desciam o rio. Muitos peixes, alguns deles grandes migradores como as enguias, as lampreias – a marinha e a de riacho -, o sável e a savelha e até o salmão do Atlântico se passeavam por este magnífico rio onde hoje são escassos – quer devido às sucessivas barragens, como à enorme alteração de habitat que as mesmas induziram, situação agravada com a degradação da qualidade da água, poluição e, mais recentemente, introdução de espécies exóticas como a perca-sol, a carpa, o achigã ou o lúcio.

O Douro de outras eras corre agora lento, menos rico e entre paredões, silenciosamente deslizando as suas memórias submersas nas águas escuras e frias, em direção ao mar a coberto da noite.

Rodeados de Vida
Subitamente, somos alertados para o facto de que não estamos sozinhos. Parece que no bosquete de sobreiral entrelaçado de medronheiros e estevas, encaixado no meio da vinha do Assobio, a proteger as entradas das antigas minas de ouro (há muito abandonadas), há algo a mexer. Escutem. Deve ser algo grande. Faz bastante barulho e vêem-se os arbustos a abanar.

Lá estão eles: mãe e três filhos, já a perder as riscas. Andam à procura de cogumelos, raízes e bolotas para a engorda. O tempo frio já se adivinha pelo círculo de gelo brilhante que rodeia a lua crescente e pela névoa que cobre os montes mais altos das redondezas, horas depois do dealbar. Os javalis, também conhecidos por porcos do mato, fazem parte integrante do ecossistema agro-florestal da Quinta dos Murças, sendo muito importantes na promoção da biodiversidade – ao revolverem as camadas superficiais, arejam o solo e reintegram a matéria orgânica que irá suportar novos ciclos de plantas e animais. No dia seguinte, podemos ver as fossadas e as banheiras formadas na lama onde se espojam para criar barreiras de proteção aos parasitas. Ocasionalmente, são organizadas batidas ou montarias para ajudar a controlar as suas populações, agora que os lobos há muito passaram para o lado das lendas de outras eras. Porém, às vezes também nos deparamos com a infeliz situação de saber que foram capturados e abatidos por caçadores ilegais, que usam armadilhas de cheiro para atrair estes animais.

Saímos do Assobio e fomos até ao olival onde encontramos outra surpresa. Esquiva e ligeira, passa por nós uma gineta, característica pela sua longa cauda listada. Alguém menos habituado a estes animais crípticos, mas típicos da nossa fauna grita: “Olha, um guaxinim!” O que é compreensível. Estamos mais habituados a reconhecer a fauna de outros países através dos programas televisivos do que a nossa, que raramente surge em programas de divulgação e educação ambiental. O vale do Douro e rios adjacentes é um hotspot de biodiversidade. Um local riquíssimo em termos de fauna e flora, fruto do encontro da geomorfologia única – uma grande rede de vales encaixados onde os xistos e granitos se vão alternando – e sob influência do encontro entre duas regiões climáticas – áreas sob forte influência mediterrânica continental e outras mais características do clima Atlântico.

À gineta que acabámos de ver a correr em frente aos faróis do carro, podemos juntar raposas, martas, doninhas ou até esquilos, toupeiras e, com muita sorte, gatos-bravos e lobos. Sim, afinal eles ainda andam por aí e estão novamente em fase de crescimento, fruto do enorme investimento feito na sua protecção e conservação e do reforço das populações, pela entrada de efectivos vindos de Espanha. No Inverno é comum observar machos jovens a deambular pelas serranias menos humanizadas à procura de território para conquistar.

Para nós, é agradável poder imaginar um mundo assim: onde pessoas e animais silvestres possam coabitar com maior harmonia e onde o uivo dos lobos ainda se possa voltar a ouvir, remetendo-nos para um imaginário ancestral onde os humanos ainda estavam à procura do seu lugar nesta paisagem fascinante.

Nem em casa estamos sós
Por alguma razão adoramos filmes de horror e suspense. O frio que nos trespassa a espinha, o gemido que nos faz disparar a adrenalina, a cantilena que nos arrepia e nos leva a esbugalhar os olhos. Nós gostamos de sustos, mas daqueles que nos deixam confortáveis após o sobressalto e nos falam de contos de medo e espanto. Um desses contos nasce de um rumor que toda a gente conhece em Murças, mas que alguns ainda hesitam mencionar. É a estória do ‘velho’.

Hoje a casa está em grandes obras de modificação e adaptação às comodidades e necessidades do século XXI, sendo que existe o máximo cuidado e respeito pelos elementos tradicionais da traça, materiais e técnicas de construção em conjugação com tendências modernas de construção sustentável e uma cuidada gestão de resíduos de construção, de materiais, da água e da energia.

A Quinta dos Murças vem do século XVIII, mas foi nos anos 40 do século XX que se deu o grande investimento na reabilitação do património e nas vinhas, tendo sido aqui plantadas as primeiras grandes vinhas ao alto que se tornaram numa característica curiosa da região. E foi o homem que impulsionou esta mudança: Manuel Pinto de Azevedo, que viria, mais tarde, a entrar no imaginário de todos que por aqui passam.

Reza a lenda que o seu carácter era tão forte e ficou tão intimamente ligado à história da quinta que, mesmo após a sua morte, algo seu se manteve por aqui. Talvez um espírito que insiste em zelar pela casa de Murças. Ninguém aqui acredita em fantasmas, claro, mas, se à noite na adega se escutar um som menos natural, se soarem passos ou algo a mexer, logo fica a dúvida: será que é o ‘velho’ que aí anda? Na antiga casa, havia um quarto histórico no qual existia um retrato de Manuel Pinto de Azevedo do qual ninguém tinha nada a temer. Ainda assim, quem lá dormia sentia-se algo intimidado ao contemplar o rosto do antepassado e, se deixasse a imaginação voar, acabava muitas vezes sugestionado: haveria ali algo mais do que um retrato? Muitos preferiram dormir noutros quartos, acompanhados, não porque acreditassem nestas coisas do sobrenatural, mas “assim como assim”, mais valia prevenir.

A Coberto da Madrugada
A nossa visita nocturna termina por aqui. É hora de recolher e deixar o véu da madrugada embalar as magníficas terras da Quinta dos Murças e os seus bosques cheios de vida, as vinhas ao alto, que criam vertigens e de onde saem os nossos mais icónicos vinhos, os olivais e o enorme laranjal de 600 árvores que marca a paisagem da quinta junto à casa, à beira rio.

Já passa das duas da manhã e o frio que se deveria sentir é disfarçado por algo que torna mais amena a brisa húmida vinda de norte: a satisfação por ficar a conhecer melhor o maravilhoso lado obscuro da Quinta dos Murças.