Cal viva, a pele do Alentejo

Cal viva, a pele do Alentejo

«Estas casas são caiadas / Estas casas são caiadas / Quem seria a caiadeira / Quem seria a caiadeira»*

A cal é pedra calcária em estado líquido, usada como tinta ou argamassa desde o princípio dos tempos. Nas grutas de Lascaux encontraram-se pinturas rupestres que indiciam o uso de cal pelos artistas de há 16.000 anos. Na pirâmide de Kéops, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, e na Grande Muralha da China a cal também está presente, a aglutinar.

Não precisamos de ir tão atrás para recordar o dia em que a mãe de Felismina Ramalho a iniciou na caiação em grupo. «Tinha 12 anos. Era um trabalho feito só por mulheres e passado de geração em geração. Toda a vida me recordo de ver as minhas avós, tias e a minha mãe a fazer este trabalho.»


O nosso encontro com Felismina, pintora sazonal de pincel em riste, aconteceu em Casas Novas de Mares, pequena aldeia do concelho do Alandroal. Foi aqui que tivemos direito a uma mini-oficina sobre a arte de caiar. Apesar do nome do lugar a água salgada está bastante longe. Já a barragem do Alqueva, encontra-se a minutos de distância.

A água é um dos elementos fundamentais para fazer cal. «A cal vem em pedra, depois derrete-se numa bilha ou numa lata em água fria. Vai-se pondo, pedra por pedra, porque ela vai ferver muito e depois queima. Mexendo para a cal ficar bem derretida, caso contrário fica pedra e areia no fundo e não dá para utilizar.»

Após 48 horas obtém-se aquilo a que se chama leite de cal e pode-se começar a pintar, com trinchas, brochas e vassouros de pelo farto distribuídos pelas mãos das caiadeiras. No entanto, a “professora” Felismina aconselha deixar a matéria-prima descansar mais tempo.

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«Depois de derretida, guarda-se durante 3 semanas antes de pintar. Até convém a cal estar derretida de um ano para o outro. Não convém utilizar-se com a parede muito fria, nem muito quente e a chover. A água da chuva tira a cal. E com o sol empola a parede.»

Tal como muitos outros afazeres alentejanos, começar a caiar com os primeiros raios de sol é a opção ideal.

«O melhor é ser numa manhã fresca. Primeiro dá-se uma demão na parede, espera-se que seque e pinta-se de novo. No final fica a parede macia, branca de verdade.»
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A cal é também um espelho da paciência alentejana, porque todos os passos têm o seu ritmo, da preparação à secagem. No final há uma recompensa de brancura, luz, textura e purificação (ao solidificar a cal absorve o dióxido de carbono do ar).

A cal branca pinta o horizonte alentejano e incentiva a repetição de gestos imemoriais realizados em família. A Câmara de Beja está a preparar a candidatura da actividade associada aos fornos de cal artesanal a Património Imaterial da Humanidade. Tradicionalmente eram os homens que coziam e tiravam a cal dos fornos para depois passarem o testemunho às mulheres. Caleiros e caiadeiras completavam-se. Entretanto os fornos caíram em desuso e hoje os homens que dominam a técnica contam-se pelos dedos de uma mão.

Quem se der ao trabalho de raspar uma destas paredes caiadas, irá descobrir as vidas, cantigas e conversas que estão mais atrás, é um verdadeiro álbum de família em camadas que se entrega à geração seguinte.
«Até que passou a ser a minha vez e, apesar de hoje não se utilizar tanto, a minha filha também sabe como se faz. Ainda hoje é o que usamos para pintar a casa.»
A cal viva, cal virgem ou simplesmente cal, pinta e une, paredes e pessoas, essas são as sua grandes qualidades, homenageadas pela Felismina e por Monte Velho.

*Moda do Entrudo, canção de Zeca Afonso inspirada pelo Cancioneiro Popular Português