EM CÂMARA LENTA

EM CÂMARA LENTA

Como vai ser a vida quando ela chegar? Serei capaz? Terei tempo? Essas questões nunca habitaram o meu pensamento. Apenas queria uma coisa: abrandar.

Quando estas palavras estiverem impressas nestas páginas de papel, ela já terá dois anos. Pudesse eu desafiar as leis da natureza e a Alice não nasceria a 17 de Março de 2017. Nesse mês sentia-me culpado por dedicar tempo demais ao trabalho de montagem do meu último documentário, Até que o Porno nos Separe. Não estava preparado para a mudança – na verdade, talvez nunca se esteja.

Os colegas de profissão já diziam que os primeiros filmes são os nossos primeiros filhos. Reconheço-lhes razão, mas este não é um filme como os outros. Na verdade, é a minha primeira filha. E isso é indescritível!

Como vai ser a vida quando ela chegar? Serei capaz? Terei tempo? Essas questões nunca habitaram o meu pensamento. Apenas queria uma coisa: abrandar. E não era preciso vir nenhum especialista dizer-mo – eu sentia que os meus dias eram demasiado intensos e preenchidos com excesso de informação, deadlines e decisões. Sentia que tudo passava num ápice, com muito a acontecer, e eu quase sem tempo para usufruir do que ficava para trás.

Telefonei para a gestora de conta da minha operadora telefónica e disse-lhe: “Quero baixar o meu plafond de dados móveis de 2 GB para 500 MB”. Pelo silêncio da minha interlocutora, acho que fui a primeira pessoa a pedir um downgrade dessa natureza. Acho que ela ainda tentou demover-me de tamanha “loucura”, mas os seus intentos não foram bem sucedidos. Felizmente. Este foi, talvez, o primeiro e consciente passo para desacelerar os ponteiros do relógio. Em todo o lado, a todas as horas, minutos e segundos, o telemóvel estava presente na minha vida. De 10 em 10 minutos, ou talvez nem isso, mais um notificação, uma mensagem, uma chamada, um alerta no feed de notícias. A porta profissional estava ali, sempre entreaberta. O gesto de agarrar o telefone e olhar para o ecrã tinha-se tornado demasiado automático. Sentia-me absorvido por um voraz mundo digital, com excesso de informações e conteúdos. A minha gestora de conta ainda não estava convencida, pelo que argumentei: “Quero olhar a vida para além do ecrã do telemóvel”. E pronto, consegui os 500 MB!
As mudanças não foram imediatas, porque hábitos e vícios não desaparecem da noite para o dia. Mas, aos poucos, fui ficando menos dependente da luminosidade do ecrã e do hábito de ver o email inúmeras vezes por dia, desde o acordar até ao deitar. Aos poucos, comecei a concentrar o meu foco e olhar nas coisas mais orgânicas da vida e a questionar-me sobre elas. Como educar uma criança num mundo com demasiados ecrãs? Era nisto que já tinha pensado, mesmo antes do nascimento da Alice.
Tinha pouco mais de três quilos quando foi pesada pela primeira vez. Uma felicidade imensa, uma responsabilidade ainda maior. Mal sabia eu que seria a pequena Alice a principal responsável pelo abrandamento da minha rotina. Com um novo elemento na família, fui deixando o trabalho cada vez mais na produtora. De segunda a sexta-feira, o mundo profissional passou a acabar, na maioria dos dias, às 18h30. Tudo passou a estar centrado no universo da pequena Alice. Fisicamente, aqueles primeiros meses até foram mais cansativos e bem nutridos de ansiedades e preocupações, mas lentamente comecei a dar valor a pequenos pormenores da vida, longe do imediatismo e consumismo voraz da informação. Em vez do som das notificações de e-mail, dos feeds das notícias, das mensagens e do Whatsapp, emergiram outros: o choro, os sorrisos…

Também a rotina das fraldas – e tudo isto embrulhado num desconhecido mundo no qual tive que aprender a viver. Nunca antes tinha trocado uma fralda, hoje sinto-me um expert.

Das coisas mais importantes que ganhei com o nascimento da minha filha, foi perceber que tudo tem o seu tempo. A Alice não cresce de um dia para o outro, o tempo dela não é o tempo do pai e da mãe. Foi talvez por isso que, na ânsia da conquista de um novo tempo, decidimos mudar de casa aos seis meses de vida da Alice. O novo cantinho tem agora um pátio que incorpora uma dúzia de metros quadrados de terra, onde temos uma tangerineira, uma pereira e uma nespereira. Não me esqueço quando disse a um familiar que gostava de plantar um relvado natural: “Porque não colocas relva artificial? Assim não tens trabalho nenhum!”. Respondi: “Quero ver a relva crescer lentamente, quero sentir-lhe o cheiro, quero que as mãos da minha filha mexam na terra, quero que ela brinque nela e que nela se suje.”
Pelo que ouço e observo, sinto que vivemos numa sociedade onde as pessoas querem tudo demasiado rápido. O elevador em vez das escadas, a autoestrada em vez da estrada nacional, séries em vez filmes, fast food em vez de slow food, wifi em vez de conversas presenciais. Vejo isto todos os dias, e não só por força da minha profissão – gosto realmente de observar pessoas e de analisar o comportamento humano. Somos cada vez mais competitivos entre nós, muitas vezes não interessa a qualidade, mas sim a quantidade de coisas que fazemos, como o número de posts no Instagram. E estamos a transmitir isso aos nossos filhos: uma cultura assente na competição e impaciência. Queremos que aprendam inglês mais cedo, que aprendam música mais cedo, queremos que façam várias atividades depois da escola, damos-lhes iPads e telemóveis antes do tempo, acreditando que os estamos a preparar para o futuro.

Não me revejo neste tempo fast, por isso plantei um relvado natural e uma horta. No primeiro ano, tivemos só tomates coração de boi. Confesso que não correu muito bem – diz quem sabe que foram plantados já fora de época. A natureza, é como a educação da Alice: tem o seu tempo próprio.

Quero abrandar para demoradamente olhar o que está à minha volta. Quero mostrar à minha filha o rebento verde que cresce entre as folhas da tangerineira, quero dar-lhe a provar as peras colhidas na nossa árvore, quero brincar aos legos na relva e ter consciência de que estou a dar-lhe outros mundos, outras sensações. Como tempo para brincar. Tempo para não fazer nada.
Penso que a Alice teve a sorte de ter pais com gosto pela natureza e que gostam muito de pessoas. Ambos nascemos na província. Ter uma horta, porcos e galinhas fazem parte das memórias mais remotas da nossa infância. De quando em vez, a Alice visita a casa dos avós – um espaço onde, felizmente, não há internet. Aqui o Panda, a Patrulha Pata, o Baby TV e os vídeos do YouTube não entram. E quando vejo a minha filha a apanhar couves com a avó, a dar comida aos animais ou a provar um tomate com sabor a tomate ou uma couve com sabor a couve, acredito que estou a proporcionar-lhe experiências, vivências e momentos únicos, que por certo serão úteis para o seu desenvolvimento enquanto criança.

Assim que regresso à grande cidade, dou por mim a pensar na vida dos avós da Alice, onde tudo é mais calmo e as preocupações da rotina diária são a horta e a comida na mesa. Que inveja!

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As tecnologias vieram para ficar e acredito que transformaram as nossas vidas para melhor. Não tenho nenhum tipo de dúvidas quanto a isso. O que ponho em causa é o facto de a tecnologia querer dominar grande parte do nosso tempo. A revolução 4.0 já bateu à porta e promete transformar ainda mais o mundo que conhecemos. Mas nada substitui o contacto cara a cara, conhecer outras culturas e realidades. Há lá coisa mais gratificante do que um belo convívio, do que passar tempo com quem gostamos?

Num futuro próximo, alimento a esperança de que a sociedade sinta a necessidade de passar por um processo de autoequilíbrio e regulação no que respeita ao uso de tecnologias. Na publicidade existem já campanhas das próprias operadoras telefónicas que alertam para o uso excessivo dos telemóveis. Existe também, actualmente, uma escola preparatória no norte do país onde o uso de telemóveis é totalmente proibido.

Quando regresso às aldeias e vilas outrora cenários dos meus documentários, testemunho novas gentes a povoar territórios desertificados. Vi casas desabitadas outra vez reerguidas, a terra a ser lavrada, vi a expansão do olival e da vinha. Conversei com pessoas que procuram viver num outro ritmo, com uma outra tranquilidade, em equilíbrio com o verdadeiro tempo das coisas. Daqui a uns anos, quando a Alice tiver a capacidade de ler e interpretar este texto, outros exemplos ter-se-ão juntado. Nesses anos, acredito que cada vez mais pessoas tenham cedido ao ritmo e agitação do tempo tecnológico.
Quero que saibas, Alice, que foste a responsável pelo abrandamento dos teus pais. Obrigaste-nos  a viver a vida com um outro tempo, mais dedicado a ti, e ainda mais em harmonia com a natureza e as pessoas. Quando leres estas palavras, espero que já tenhamos observado vezes sem conta o pôr-do-sol no mar, que tenhamos percorrido inúmeros trilhos pedestres por essas montanhas, que tenhamos plantado mais árvores de fruto e que as tenhamos visto crescer, ano após ano. Espero que as couves e os tomates dos teus avós ainda mantenham o sabor original. Espero que tenhas ficado chateada por não te levarmos a restaurantes de fast food as vezes que querias e por, em vez disso, te termos dado a conhecer a autenticidade das tascas e tabernas de Portugal. Espero que tenhas feito birra por não te termos comprado o telemóvel antes das tuas amigas, por não te termos dado a password do wifi, por não cedermos ao ritmo que a sociedade moderna nos dita.

O pai e a mãe acreditam que tudo tem o seu tempo. Contigo, só pode ser em câmara lenta. E tu, o que pensas disto?

 

Texto e fotografias da autoria de Jorge Pelicano

Jorge Pelicano é realizador e cineasta, português, que percorre Portugal e o mundo para contar histórias de impacto social e humano.

É autor de filmes como “Ainda há pastores?”, “Pare, Escute, Olhe”, “Pára-me de repente o pensamento” e, a mais recente obra, “Até que o porno nos separe”.

Os seus documentários foram exibidos em mais de 20 países e receberam diversos prémios nacionais
e internacionais.