Sangue na Guelra: a agitar a gastronomia portuguesa

Sangue na Guelra: a agitar a gastronomia portuguesa

A 5ª Edição do Sangue na Guelra decorreu durante o mês de Maio no HUB Criativo do Beato e em vários restaurantes espalhados pela cidade de Lisboa. Esta foi mais uma edição que se revelou um sucesso pela sua qualidade, criatividade e irreverência. Falámos sobre o projecto com os seus criadores, Ana Músico e Paulo Barata, que voltaram a arriscar em fazer melhor e diferente.
O Sangue na Guelra já vai na sua 5ª Edição. Como começou esta viagem?
Ana Músico: Esta viagem começou em Itália, Modena, na Osteria Francescana, com a equipa do chef Massimo Bottura. O Paulo foi a Modena em trabalho e acabou na Osteria a fotografar o Massimo no seu atelier. Foi aí que surgiu pela primeira vez a ideia de criarmos algo para o nosso país em vez de nos limitarmos a criticar a falta de iniciativa. Mas foi antes, no Vila Joya em Portugal, no festival Tribute to Claudia, que nos ‘apaixonámos’ e comovemos com a dedicação, o trabalho e o empenho de jovens cozinheiros, muitos ainda miúdos de 17, 18, 20 anos. Estávamos em 2008, 2009, ainda não tínhamos a percepção de que esta era mesmo a primeira semente, que ficou dentro de nós. Quando o Paulo regressou de Modena, em 2012, falámos e criámos um conceito: trazer os sous-chefs e head-chefs (os tais miúdos que tínhamos visto anos antes no Vila Joya) para o palco principal. Falámos com o Duarte Galvão, director do Peixe em Lisboa e autor do blog Mesa Marcada, para ter a opinião dele e ele desafiou-nos a criar o Sangue na Guelra, como primeiro evento satélite do Peixe, para a edição seguinte, em 2013. Entretanto, saímos do Peixe em Lisboa e conquistámos um espaço próprio, que era o que fazia mais sentido para as duas partes.
A gastronomia sempre esteve muito presente nas vossas vidas?
Ana Músico: Não, de todo. Éramos jornalistas freelancer, o Paulo fotojornalista. Fazíamos sociedade, investigação, e o Paulo viajava muito. Foi no Vila Joya que tivemos o primeiro contacto a sério com a alta cozinha –  acho que foi um momento de mudança para nós e para o país na forma como vemos hoje a alta cozinha. Entrámos pela porta de ouro, digamos, onde tudo era mágico, novo, surpreendente. Foi uma inspiração para todos nós e muita coisa tem acontecido desde então. Antes disto, a gastronomia estava presente nas nossas vidas, sim, mas de um modo muito emocional e afectivo: as nossas mães são excelentes cozinheiras, temos famílias grandes e a comida sempre foi o melhor pretexto para nos reunirmos.
Como é organizar um projecto assim?
Ana Músico: Aqui está um bom tema para uma reportagem. É muito complicado, no nosso caso, porque somos ou pretendemos ser o mais autónomos possível, alternativos e independentes para criarmos com liberdade. Ou seja, ainda temos uma verba muito limitada para o que nos propomos fazer – que é muito. Depois, somos um casal, temos que nos gerir enquanto tal e, sobretudo, sermos eficazes e não comprometermos o nosso trabalho. Não é fácil, mas por outro lado somos ‘almas gémeas’, temos os mesmos objectivos, partilhamos ideias e sonhos, caminhamos juntos na mesma direcção com opiniões e visões por vezes muito diferentes. Acho que todas as pessoas que organizam eventos desta natureza, sejam de música, cinema, artes gráficas de rua ou outras, passam pelo mesmo. Todos os anos, a cada edição, arrependemo-nos e juramos ser a última vez, mas depois… ainda não terminámos uma e já temos a cabeça no ano seguinte, no que podemos fazer melhor, no que podemos inovar e surpreender – é engraçado. Organizar um projecto assim é muito intenso e enriquecedor e acima de tudo e de todas as dificuldades adoramos o que fazemos.
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Qual o critério de escolha dos chefs e restantes convidados?
Ana Músico: Têm de ser pessoas com um trabalho inovador e relevante. Pessoas criativas mas também rigorosas, que entrem no espírito do Sangue na Guelra: partilhar, aprender, arriscar, inovar.
Porque sentiram a necessidade de criar um Manifesto? Já pensaram em partilhá-lo de forma mais abrangente com o público?
Ana Músico: Esta necessidade não partiu apenas de nós, mas de muitos chefs, de muitas pessoas ligadas à gastronomia. E todas essas pessoas participaram e fizeram parte deste processo. Por isso, o Manifesto não é nosso, é para ser abraçado por todos os que entenderem fazê-lo. É claro que não podíamos envolver todo o país num primeiro momento, não seria humanamente possível. Mas o trabalho de o divulgar e de o levar para o terreno, para a acção, começa agora. Para já, o documento ficou alojado no site Sangue na Guelra (www.sanguenaguelra.pt/manifesto/), mas o nosso objectivo é colocá-lo num site mais oficial e institucional. Já estamos a trabalhar nesse sentido.
Estão a considerar dar forma a algum dos pontos do manifesto? Como o ensinar às crianças o que é a cozinha portuguesa, por exemplo.
Ana Músico: Claro, esse é que é o grande desafio para todos nós, para o país. Mas um movimento desta natureza não se faz com uma ou duas iniciativas ou num par de meses: é um processo que leva anos, que precisa de tempo. Para prosseguirmos precisamos de apoios de diferentes agentes e de natureza diversa. É preciso desenvolver projectos concretos, exequíveis, com sentido e com objectivos com agentes que já têm know how, que já estão no terreno. É isso que já estamos a fazer também.
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Acham que as pessoas que participam no evento são as suficientes para disseminar esta irreverência que vos corre no sangue, e as ideias que propõem?
Ana Músico: Não, temos que ser muitos mais. Mas o que é certo é que o movimento tem crescido, há muitas pessoas envolvidas, muitas mais que têm conhecimento e um enorme interesse. Temos que continuar a trabalhar, ainda agora começámos.
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Como pode cada um de nós contribuir para dar mais força à amplificação, sem receios, da gastronomia portuguesa?
Ana Músico: Devemos envolver-nos e ter iniciativa em vez de esperarmos que nos chamem porque sim. Devemos ter todos um espírito mais aberto, deixar cair preconceitos e ideias feitas e criticar com conhecimento. Todos temos o nosso papel neste processo: os cozinheiros, os produtores, a imprensa, os investigadores, os consumidores e por aí fora. Esta mudança faz-se com pequenos gestos no dia-a-dia, pequenas decisões no nosso trabalho. Todos somos responsáveis pelo futuro e pelo presente da gastronomia portuguesa!

Fotografias da autoria de Gonçalo Villaverde